
Depois dos últimos grandes incêndios da zona centro do país, parece que, para alguns articulistas, afinal a enorme destruição da floresta apenas resultará da ação de uns quantos incendiários dolosos, da passividade cúmplice de alguns autarcas e da criminosa inação de pequenos proprietários ausentes. Explicações demasiado simples. Pior: explicações erradas para um mundo rural em profunda mutação e em que os incêndios são “apenas” um dos elementos, ainda que um elemento dramaticamente marcante.
Para que não haja dúvidas, comecemos por reconhecer que um só crime de incendiarismo que fosse e já seria demasiado crime. Mas se nos limitarmos a olhar a ação dos incendiários como única ou principal origem dos incêndios florestais, esquecemos que 80 a 87% dos incêndios rurais não têm origem criminosa. Mais: de acordo com um estudo apresentado pela investigadora Cristina Soeiro, em 2018, no Centro de Estudos Judiciários (link is external), os incêndios provocados pelo chamado “Comportamento criminal instrumental de benefício” visando a obtenção de benefícios diretos, resultam de apenas 13,6% da amostra geral dos comportamentos criminosos
Apesar do seu número relativamente reduzido, os comportamentos criminosos alimentam boatos sobre vagas de incendiarismo “por conta”, enchem as páginas dos tabloides e alimentam justicialismos rasteiros. Mas, numa análise ponderada, não justificarão um aumento das penas para incendiários (link is external) como forma de diminuir o número de crimes, como o faz, sistematicamente a direita. Há, aliás, quem defenda (link is external) que, dado o perfil-tipo do incendiário, um aumento de pena não teria efeito na desmotivação da ação criminosa, impondo-se outros tipos de intervenção.
É certo, porém, que cerca de 98% das ocorrências em Portugal Continental têm causa humana. Pelo 3º Relatório Provisório dos Incêndios rurais de 2019, (link is external) ocorridos entre 1 de janeiro e 31 de julho deste ano, ficamos a saber que 12 % destes sinistros têm origem em acidentes e 48% são provocados involuntariamente por mau uso de fogo, maioritariamente em queimadas extensivas de sobrantes florestais ou agrícolas. Estes dois indicadores acumulados atingem 60% das causas dos incêndios rurais, uma ordem de grandeza a merecer reflexão profunda.
Ultimamente surgiu também a acusação aos autarcas, em particular dos presidentes das câmaras, de “culpa” nos incêndios florestais ou, pelo menos e vá lá saber-se porquê, de cumplicidade passiva com os seus causadores.
No auge do último grande incêndio do centro do país, o Presidente da Câmara de Mação, Vasco Estrela, chegou mesmo a ser acusado pelo Ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita (link is external), de se demitir das suas funções de responsável concelhio da Proteção Civil. Acusação indigna, vinda da parte do único que põe e dispõe (disporá?) dos meios necessários para enfrentar a enorme catástrofe que, na altura, varria aquele pobre e martirizado concelho do interior.
A acusação governamental aos autarcas fez escola e agora até já são acusados de uma putativa e muito suspeita falta de vigor na exigência de investigação do incendiarismo. Está preocupantemente generalizada a moda de bater em “quem se mete com o governo”.
Finalmente, ainda segundo alguns, os pequenos proprietários serão outros dos “culpados” pelos incêndios, pois, ao não cuidarem das suas pequenas parcelas, deixando-as a mato, criarão condições para os sinistros incontroláveis.
Esquece-se que a pequena propriedade, sem suficiente escala, não é rentável e que grande parte dos pequenos proprietários já nem sequer dispõem de recursos financeiros para pagar a sua “limpeza” coerciva. Muitos vão buscar aos parcos rendimentos gerados noutras atividades o dinheiro que “enterram” a limpar as pequenas parcelas herdades dos seus ancestrais E já ultrapassa os dedos de uma mão o número de idosos que, este ano, morreu em queimadas (link is external) para limpar terrenos, um número dramático que parece impressionar pouco os citadinos teóricos das “limpezas”.
Os pequenos proprietários precisam é de apoio público para em conjunto gerirem de forma agregada as suas parcelas, em Unidades de Gestão Florestal (UGF), de forma rentável e ambientalmente sustentável, com critérios e objetivos de ordenamento e de gestão conformes ao interesse público. Dispensarão, certamente, teorias que dão cobertura à concentração capitalista das terras que, mais cedo ou mais tarde, cairão na posse das 3 principais fileiras produtivistas florestais. É uma grave ilusão supor que, no sistema atual, a concentração da pequena propriedade, mesmo da que não tem dono conhecido, dará mais propriedade pública.
Em suma, o populismo insinua-se na análise das causas e das soluções para os incêndios rurais; simplifica o que é complexo, apontando uns quantos “culpados”, apregoa umas receitas de cartilha, elide os interesses em confronto e foge à definição concreta do conteúdo das “reformas” por fazer. Ora, aqui é que “bate o ponto”….